terça-feira, 29 de novembro de 2016

Dreamer

José nunca se considerou um cara de sorte. Seus pais morreram num acidente, depois ele se apaixonou por Maria, que parecia estar com ele só por causa das drogas que ele lhe arranjava. Quando finalmente ele pensou que ela poderia amá-lo e que, talvez, só talvez, eles tivessem alguma chance... santa hipocrisia do destino, Maria também é arrancada de sua vida e transformada numa triste e inalcançável lembrança.

Uma briga de gangues, tiros, e é o fim da história de amor de José.

José nunca pensou que seria tão fácil esquecer, mas ele esqueceu. Graças ao choque, José perdeu as lembranças e pôde continuar a sua vida pacata e sozinha. Ele melhorou suas notas, parou de usar drogas, voltou a viver. Sua irmã, Elena, não poderia estar mais orgulhosa.

Só que José não se sentia feliz. As lembranças se foram, mas elas deixaram um vazio tão grande que não o impediam de notar que alguma coisa estava errada.
José se sentia sozinho.

Então José conheceu Vitória, a garota irritantemente simpática que não saía de seu pé. No princípio, José não se interessou, mas acabou vendo-se envolvido na história toda, e de repente lá estava ele, apaixonado por uma segunda problemática garota em seus curtos 15 anos de vida. Lá estava José, sendo trocado por um cara mais velho, mais experiente, mais imbecil.

Mas José sempre foi otimista, um sonhador. Mesmo quando tentou se matar com aqueles comprimidos de Elena, as tristes lembranças de Vitória, a garota que lhe deixou, ainda vivas em seu coração, pensando que estaria se encaminhando para uma vida imortal - o segredo após a morte, o grande desafio! - ele tinha planos, tinha sonhos, tinha otimismo.

Infelizmente o destino aprontou com ele de novo, e ao invés do grande desafio, José acordou no hospital. José já disse que não se considerava um cara de sorte?

Agora ele não tinha Vitória, e era um suicida. E sua irmã também não estava falando com ele, porque estava muito, muito decepcionada. José nunca esteve tão sozinho.

Qual não foi a surpresa de José ao perceber-se tão próximo de Hope, a melhor amiga de sua irmã, que estava tentando intermediar. José se perguntou como nunca notara o quanto ela era interessante, e o quanto os dois pareciam se entender. Imaginou que Hope estaria igualmente confusa com aquela relação de repente tão íntima, e estava preparado para lutar por ela e convencê-la. Não seria a primeira vez. Idade não era um problema para José, uma vez que seus sentimentos sempre tiveram um peso maior em seu coração do que o número de anos vividos. E Hope era… era especial. José tinha certeza de que, com ela, tudo seria diferente dessa vez.

Não era atoa que José era um sonhador.

Ele passou a mochila pelos ombros, rindo torto, sem acreditar. Não era possível. Era absurdo demais que isso estivesse acontecendo logo com ele, logo agora. De novo.

Lançou um último olhar para a mesa onde Hope e aquele cara novo – qual era mesmo o nome dele? Lucas? Lucio? Luke? José não fazia ideia – conversavam como se fizesse muito tempo que se conheciam. Sentiu uma queimação na garganta, um solavanco em suas entranhas. Hope parecia à vontade com ele. Hope estava se divertindo e Hope sequer olhava em sua direção. Mas José a tinha convidado para sair, era um encontro!

Não era?

Talvez tivesse sido um erro pensar que Hope e ele pudessem seguir o mesmo caminho. Talvez ele devesse continuar sozinho.

Talvez José fosse apenas um sonhador exagerado. Talvez ele devesse parar de sonhar.

Deu as costas e se foi.

I'm just a dreamer
I dream my life away, today
I'm just a dreamer
Who dreams of better days, oh yeah
I'm just a dreamer
Who's searching for the way, today
I'm just a dreamer

Dreaming my life away, oh yeah yeah yeah

(Texto adaptado, sendo publicado inicialmente como uma fanfiction songfic de Jeremy, de The Vampire Diaries)

Nasci(TOR)mento

Conheço gente com vontades estranhas, mas sou a única que tem vontade de se esconder embaixo dos móveis, acho.

Em posição fetal e com o dedo na boca, até o mundo acabar e ser seguro sair.

Já posso sair?

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

30 de Março

30 de março, apenas um pedido:  que Deus me abençoe para que eu possa ter humildade, e nunca me achar superior ou julgar alguém menos capaz.

Que eu saiba reconhecer que algumas pessoas vão ter sucesso naquilo que eu fracassei - ou que não cheguei a tentar, por medo de fracassar.

Que eu saiba nunca duvidar do potencial de uma pessoa - especialmente se for alguém próximo, que respeita a minha opinião. Preciso acreditar em quem acredita em mim.

E que eu saiba também, Senhor, deixar para lá quando alguém tentar impor uma superioridade sobre mim. Que eu seja humilde a ponto de saber que essa superioridade técnica pode realmente existir, mas que eu seja corajosa o suficiente para deixar para lá e continuar acreditando no meu potencial. Investindo em mim. Abraçando as minhas oportunidades.

Porque, afinal, eu sei que não nenhum limite quando há a disposição de ser melhor, de chegar mais longe, de surpreender.

Que eu feche meus olhos e meus ouvidos para o que é boicote, e que eu saiba reconhecer uma crítica que visa meu crescimento. Da mesma forma, que eu perca a voz quando a tentação for puxar para baixo; que eu seja escada, e ajude a subir. Para cima, sempre.

Amém.

Almoço solitário

Hoje eu vi um casal. Não sei se eles brigavam, terminavam, ou se alguém estava passando mal. Eles se olhavam, mas havia tensão. Ela tinha uma expressão sofrida, os olhos inquietos. Os dele estavam parados. Fixos nela. Tinha algo. Parei de comer e encarei, não pude evitar. Tinha algo. Era importante, eu sabia. Tinha algo. A qualquer momento alguém se levantaria, daria as costa, não olharia para trás. Seria ele? Achei que seria ela. Eu testemunharia, então, um momento que mudaria a vida de duas pessoas para sempre. Talvez um dia eles se reencontrassem, fizessem as pazes, tivessem netos. Eu? Eu nunca ficaria sabendo. Carregaria para sempre aquele olhar. Aquela tensão. O momento raro em que os dedos se abrem lentamente e, feito a brisa suave de um tímido pôr-do sol, a joia rara e bem protegida que é o amor se esvai feito areia fina.

Meu coração palpitava, esperando. A qualquer momento. Stalker sem intenção, mas sem coragem de desviar o olhar. De repente, ele se levantou. Seria ele, então? Mas parou na frente dela, que não hesitou em aceitar a mão oferecida. Ela fez uma careta, comentou algo, ele concordou, e eles se foram. Juntos, porém separados. Percebi, então, que não tinha algo. Não tinha algo. Não tinham algo.

Era o algo o que eles não tinham.

domingo, 27 de novembro de 2016

Um pequeno e inevitável Drama

Abre-se a cortina. A linda melodia que tocava morre lentamente. Em cena, um casal se senta a um piano de calda preto. Olham-se, apaixonados. No chão, em um carpete vermelho ao lado da lareira e bocejando, um gordo Chartreux olha indiferente as mãos entrelaçadas. Lá fora, chove.

ANA: Posso fazer uma pergunta?

PEO: Pode.

ANA: Eu... Eu nem sei como perguntar isso, na verdade. Deixe-me ver... Bem. Meu tio abandonou minha tia depois de 30 anos de casados. Trinta anos! Ele tinha outra mulher, descobrimos. Uma amante. Provavelmente ficaram juntos por uns dois anos. Meu tio disse que se apaixonou, e não teve outro jeito. Foi ser feliz.

PEO: Entendo. É uma coisa terrível, mas se o amor acabou...

ANA: Veja, Peo, tente acompanhar meu raciocínio. Agora - e isso é muito importante, muito importante mesmo.

Peo se ajeita no banquinho, mas não solta a mão de Ana. Os dois se olham com intensidade, mas ninguém faz qualquer outro movimento, exceto, talvez, por Refier, o gato gordo acinzentado sobre o qual já falamos, que passou a ronronar no tapete.

ANA: E se o amor não passar de brechas que damos às outras pessoas para que elas vão cavando cada vez mais fundo para dentro de nós? Brechas, Peo. Brechas. Rupturas em nossas vidas imperfeitas e previsíveis. Meu tio... ele pode não ter sido culpado por estar com problemas no relacionamento dele, por ter conhecido outra pessoa e se encantado. Por ter aberto a primeira brecha. Mas... e as outras? Não sejamos inocentes, Peo. Chega um ponto em que notamos que nossos sentimentos são perigosos, bagunçados. A próxima brecha já não é acidental. Não necessariamente consciente, mas um tipo de... autossabotagem.

PEO: O que está dizendo, Ana?

ANA: Peo... Meu querido Peo. As aulas de poesia, agora as aulas de piano. Meu Peo. Não estamos nós nos autossabotando também?

Refier ergue a cabeça, olha com a já conhecida indiferença para as mãos de Peo, que tremem antes de soltar as mãos de Ana. Ele boceja e volta a ronronar, enquanto os olhos de Peo transbordam em agonia.

PEO: Você... você está, Ana? Então você está?

ANA: Você não vê, Peo? Não consegue ver? A cada vez que estamos juntos... minhas mãos suam. Estão suando agora. Olhá-lo nos olhos... é um prazer e uma agonia. Sua presença é um imã... um paradoxo sobre o qual eu não consigo parar de pensar. Mas as brechas, Peo... as brechas. Precisamos parar de abri-las.

PEO: Espere, Ana, por favor... você não pode... não pode me dizer estas coisas... Dizer que estão abertas as brechas que eu pensei que só eu havia cavado. Estou confuso, Ana... Achei que as havia imaginado. Mas agora posso ver. Sim, há um grande holofote sobre elas. É inebriante. Não pode ameaçar fechá-las... eu não... eu preciso...

Peo inclina-se para a frente, involuntariamente. Ana prende a respiração. Refier levanta, tensiona o corpo e rosna, bem na hora em que a porta se abre e uma figura alta e elegante caminha para dentro em um terno prateado muito bem alinhado. Tira a cartola da mesma cor e a pendura, abrindo um sorriso ao notar o visitante.

FERNANDO: Dr. Peo! Que surpresa encantadora. O que faz aqui, bom amigo?

A pausa que se segue é curta, mas tão constrangedora que até Refier se retesa e pula no colo de sua dona. Fernando poderia ter percebido, mas não percebeu, ou não quis perceber. Vai para o lado da esposa e a abraça. Peo se adianta e abre um sorriso amarelo para cumprimentar seu amigo.

PEO: Fernando. Bom vê-lo, amigo. Ana está me ensinando aquela melodia, se lembra?

FERNANDO: É mesmo, é mesmo. Você agora está aprendendo essas coisas femininas, né? Haha. Mas fique para o chá, meu amigo. Conte-me sobre Sandra. Como ela está?

PEO: Sandra? Bem. Ela está bem. É mesmo. Não posso ficar, Fernando. Me lembrei que tenho um... compromisso para com ela. Sinto muito. Fica para a próxima.

FERNANDO: É claro, não se preocupe. Esposas são nossas prioridades, sei como é. Não dê nenhuma brecha para que ela fique insana com você.

Peo inevitavelmente olha Ana de soslaio. Refier, já recuperado, ronrona sob os carinhos de sua dona, enquanto esta retribui o olhar.

PEO (já pegando o chapéu e se dirigindo à porta): algumas brechas são inevitáveis, bom amigo. Inevitáveis.