Abre-se a cortina. A linda melodia que tocava morre lentamente. Em cena, um casal se senta a um piano de calda preto. Olham-se, apaixonados. No chão, em um carpete vermelho ao lado da lareira e bocejando, um gordo Chartreux olha indiferente as mãos entrelaçadas. Lá fora, chove.
ANA: Posso fazer uma pergunta?
PEO: Pode.
ANA: Eu... Eu nem sei como perguntar isso, na verdade. Deixe-me ver... Bem. Meu tio abandonou minha tia depois de 30 anos de casados. Trinta anos! Ele tinha outra mulher, descobrimos. Uma amante. Provavelmente ficaram juntos por uns dois anos. Meu tio disse que se apaixonou, e não teve outro jeito. Foi ser feliz.
PEO: Entendo. É uma coisa terrível, mas se o amor acabou...
ANA: Veja, Peo, tente acompanhar meu raciocínio. Agora - e isso é muito importante, muito importante mesmo.
Peo se ajeita no banquinho, mas não solta a mão de Ana. Os dois se olham com intensidade, mas ninguém faz qualquer outro movimento, exceto, talvez, por Refier, o gato gordo acinzentado sobre o qual já falamos, que passou a ronronar no tapete.
ANA: E se o amor não passar de brechas que damos às outras pessoas para que elas vão cavando cada vez mais fundo para dentro de nós? Brechas, Peo. Brechas. Rupturas em nossas vidas imperfeitas e previsíveis. Meu tio... ele pode não ter sido culpado por estar com problemas no relacionamento dele, por ter conhecido outra pessoa e se encantado. Por ter aberto a primeira brecha. Mas... e as outras? Não sejamos inocentes, Peo. Chega um ponto em que notamos que nossos sentimentos são perigosos, bagunçados. A próxima brecha já não é acidental. Não necessariamente consciente, mas um tipo de... autossabotagem.
PEO: O que está dizendo, Ana?
ANA: Peo... Meu querido Peo. As aulas de poesia, agora as aulas de piano. Meu Peo. Não estamos nós nos autossabotando também?
Refier ergue a cabeça, olha com a já conhecida indiferença para as mãos de Peo, que tremem antes de soltar as mãos de Ana. Ele boceja e volta a ronronar, enquanto os olhos de Peo transbordam em agonia.
PEO: Você... você está, Ana? Então você está?
ANA: Você não vê, Peo? Não consegue ver? A cada vez que estamos juntos... minhas mãos suam. Estão suando agora. Olhá-lo nos olhos... é um prazer e uma agonia. Sua presença é um imã... um paradoxo sobre o qual eu não consigo parar de pensar. Mas as brechas, Peo... as brechas. Precisamos parar de abri-las.
PEO: Espere, Ana, por favor... você não pode... não pode me dizer estas coisas... Dizer que estão abertas as brechas que eu pensei que só eu havia cavado. Estou confuso, Ana... Achei que as havia imaginado. Mas agora posso ver. Sim, há um grande holofote sobre elas. É inebriante. Não pode ameaçar fechá-las... eu não... eu preciso...
Peo inclina-se para a frente, involuntariamente. Ana prende a respiração. Refier levanta, tensiona o corpo e rosna, bem na hora em que a porta se abre e uma figura alta e elegante caminha para dentro em um terno prateado muito bem alinhado. Tira a cartola da mesma cor e a pendura, abrindo um sorriso ao notar o visitante.
FERNANDO: Dr. Peo! Que surpresa encantadora. O que faz aqui, bom amigo?
A pausa que se segue é curta, mas tão constrangedora que até Refier se retesa e pula no colo de sua dona. Fernando poderia ter percebido, mas não percebeu, ou não quis perceber. Vai para o lado da esposa e a abraça. Peo se adianta e abre um sorriso amarelo para cumprimentar seu amigo.
PEO: Fernando. Bom vê-lo, amigo. Ana está me ensinando aquela melodia, se lembra?
FERNANDO: É mesmo, é mesmo. Você agora está aprendendo essas coisas femininas, né? Haha. Mas fique para o chá, meu amigo. Conte-me sobre Sandra. Como ela está?
PEO: Sandra? Bem. Ela está bem. É mesmo. Não posso ficar, Fernando. Me lembrei que tenho um... compromisso para com ela. Sinto muito. Fica para a próxima.
FERNANDO: É claro, não se preocupe. Esposas são nossas prioridades, sei como é. Não dê nenhuma brecha para que ela fique insana com você.
Peo inevitavelmente olha Ana de soslaio. Refier, já recuperado, ronrona sob os carinhos de sua dona, enquanto esta retribui o olhar.
PEO (já pegando o chapéu e se dirigindo à porta): algumas brechas são inevitáveis, bom amigo. Inevitáveis.
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